O que torna algo “poesia”?

Renata Pereira
4 min readMar 26, 2024

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“Se quiserem que eu tenha um misticismo, está bem, tenho-o
Sou místico, mas só com o corpo.
A minha alma é simples e não pensa.

O meu misticismo é não querer saber.
É viver e não pensar nisso.

Não sei o que é a Natureza: canto-a.
Vivo no cimo de um outeiro
Numa casa caiada e sozinha,
E essa é a minha definição”.

Alberto Caeiro

  1. Introdução

Muitas vezes, ao falar de poesia, nos debruçamos quase que de forma exclusiva na figura do poema — como se esse formato literário fosse o único ou principal recipiente capaz de conter a poética contida nas coisas.

Por seus elementos de concisão, ritmo, musicalidade e figuras de linguagem, a poesia como gênero literário é um campo fértil para trabalhar instantes poéticos e traduzi-los em palavra. No entanto, nem o poema é capaz de fazer caber a totalidade do mundo deslumbrado da poesia num conjunto de versos. Em seu livro O Arco e a Lira, o poeta e ensaísta Octavio Paz argumenta que:

“(…) há poesia sem poemas; paisagens, pessoas e fatos podem ser poéticos: são poesia sem ser poemas. Pois bem, quando a poesia acontece como uma condensação do acaso ou é uma cristalização de poderes e circunstâncias alheios à vontade criadora do poeta, estamos diante do poético” (PAZ, 1982, p. 16).

O objetivo deste curto ensaio é analisar o filme “Dias Perfeitos” (Wim Wenders, 2023) como um retrato da poesia como configuração de olhar ou atitude ontológica perante o mundo, e não apenas como sinônimo de “poema”, figura literária com certas características demarcadas por uma tradição.

2. Sinopse de Dias Perfeitos

No filme, acompanhamos a rotina prosaica do personagem Hirayama, um profissional que realiza faxina de banheiros em Tóquio. Todos os dias, ele acorda, arruma o seu futon, cuida de uma coleção de mudas, toma um café em lata, vai para o trabalho escutando música, passa o dia limpando banheiros, vai para um parque na hora do almoço e tira fotos da luz atravessando a copa das árvores, às vezes janta fora, volta para casa, lê alguma obra de literatura e dorme. A rotina se repete de forma quase idêntica ao longo do filme, com algumas pequenas rupturas (como a chegada de sua sobrinha ou momentos amigáveis com a crush de seu colega de trabalho), e é nessa repetição que enxergamos o mundo pelos olhos de Hirayama — e o mundo, para ele, é uma experiência poética (algo que é expresso apenas pelo olhar e forma como ele se relaciona com o ambiente, sem diálogos expositivos ou palavras).

3. Configuração de olhar

“O que a poesia ensina é apenas um modo de ver” (MOISES, 2020, p. 22).

Como Fernando Pessoa, que alega por meio de poema do heterônimo Alberto Caeiro — se sentir nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo (PESSOA, 2006), o personagem Hirayama, sem grandes monólogos ou momentos de exposição do roteiro, carrega na expressão a mesma atitude de metamorfose do poeta modernista, que, por escolha ou tendência, se transforma no constante toque do eu com o mundo, numa dança de vai e vem e não permite a permanência do real.

Todos os dias, o personagem tira fotos analógicas do mesmo ângulo da copa de uma árvore, e, quando as revela no fim de semana, demonstra uma surpresa alegre e ingênua ao constatar que as fotos nunca saem iguais, assim como o seu olhar, que também se transforma na repetição do cotidiano. Seria essa atitude rebelde que faria da poesia uma experiência estética comovente? A renovação constante do mundo que se maleabiliza pelo ente que o observa?

Pensando assim, a existência do personagem e de seu olhar mutante encarna a poética quase como ato de feitiçaria, que, pela configuração da lente que vislumbra o real — acaba às vezes por criá-lo, como argumenta Octavio Paz nos ensaios intitulados “A busca do presente”:

“Ora, a operação poética é uma atividade mágica ou religiosa? (…) A poesia é irredutível a qualquer outra experiência. E é claro que a poesia, como um fruto já amadurecido como um poema, não é religião nem magia. Mas o espírito que a expressa, os meios de que se vale e a raiz instintiva que está na sua origem podem muito bem ser mágicos ou religiosos” (PAZ, 2017, p. 18).

4. Métrica e repetição

Ao que parece, duas causas, e ambas naturais, geraram a poesia. O imitar é congênito no homem (e nisso difere dos outros viventes, pois, de todos, é ele o mais imitador , e, por imitação, aprende as primeiras noções), e os homens se comprazem no imitado (ARISTÓTELES, 1992, p. 13).

O ritmo lento e repetitivo, tão odiado num mundo dominado por reels e músicas de 30 segundos, se apresenta no filme como um ato tanto deliberado quanto, de certa forma, revolucionário, escolhido a dedo para trazer o óbvio que se revela na recorrência. Como num poema metrificado, o roteiro e direção de Dias Perfeitos apela à ciclicidade do cotidiano da cidade, e como Charles Baudelaire, que encontrava beleza por meio da flânerie numa cidade vista pelos seus contemporâneos como corrompida, Hirayama encontra — não necessariamente a felicidade, mas o sentimento de estar vivo — em seus dias simples no caos de Tóquio (sem apagar o teor implícito de crítica de classe que aparece constantemente no subtexto do filme).

Referências

ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Ars Poetica, 1992.
MOISES, Carlos. Poesia para quê? São Paulo: UNESP, 2020.
PAZ, Octavio. A busca do presente: e outros ensaios. 1. ed. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2017.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
PESSOA, Fernando. Poemas de Alberto Caeiro. Porto Alegre: L&PM, 2006.

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